Resgate

Um conto pra falar de realidade. Escrito com relatos que li e ouvi de amigos e parentes que estão vivendo as enchentes no Rio Grande do Sul.

Writing
Written by
Débora Backes Barboza
in
Portuguese
Published on
May 23, 2024

© Wolfgang Hasselmann

Eu A escutei. Escutei bem claro como Ela se aproximou em seu ritmo bem passado de quem caminha com a segurança de poder abrir espaços. Ouvi como aos poucos avançou pelas calçadas se rastejando majestosamente e invadiu a entrada do prédio, depois a garagem e logo os apartamentos do térreo. Dessa vez, Ela não veio de cima, batendo suas unhas nos nossos telhados com insistência para que a deixassem entrar. Ela foi mais certeira. Esticou as mãos, os braços, as pernas, o corpo inteiro sobre nossa terra.

Tive tempo de descer as escadas para ver sua chegada. Vi os primeiros vizinhos correndo para onde podiam, gatos lutando para não entrar em casinhas minúsculas, crianças brigando para ficar no colo. O síndico na portaria enfiou as televisões de segurança numa caixa com pressa. Caro demais para serem perdidas agora. E ainda por cima podem ser roubadas! Eu ainda tentava processar suas palavras quando vi alguns desavisados montarem em seus carros como se fossem cavalos de guerra. Alguns logo desistiram. Alguns conseguiram partir. Outros, como eu, voltaram para suas casas para pensar. Mas Ela foi mais rápida. Logo chegou e se encaixou entre as paredes de concreto, as grades de ferro e até bisbilhotou nas caixas do correio.

Me escondi nos meus lençóis e escutei seu silêncio. Como um hóspede que chega na sua casa sem avisar, Ela agora descansava no quarto de visitas sem fazer demandas, mas ao mesmo tempo querendo tudo. Da minha cama, eu comecei a me acostumar com Sua presença que já tomava minhas paredes em formas de gotas suadas.

No segundo dia pela manhã, um som feriu meus ouvidos. Me levantei custosamente dos lençóis brancos sujos que já não trocava há semanas. Meus pés gelaram ao encontrar o chão e foi uma batalha fazê-los chegar até a janela. Um aparato de madeira com um motor barulhento acoplado. Os homens dentro dele flutuavam inseguros enquanto uma única palavra saia de suas bocas várias vezes. A vizinha do lado respondeu eufórica. Seu grito logo virou um coro acompanhado pelas vozes de tantos outros vizinhos que saiam de seus esconderijos. Pensei em abrir a boca, mas Ela segurou minha garganta como se eu agora A pertencesse. Não podia deixá-La. Através da tela de proteção que um dia serviu para conter um animal dentro do minúsculo apartamento, vi tudo sem me mexer. Coletes salva-vidas laranjas carregaram a menina de cinco anos do 203, depois a senhora rabugenta do 304, os cachorros do 101 ficaram, não cabiam no barco com a Dona Marta e seus três filhos. O menino chorou com os braços esticados como se fossem uma corda que pudesse agarrar seu vira-lata. Uma mulher chorosa do 203 entregou um cobertor bem enrolado para um dos homens jovens do barco. Pedia desesperada que, por favor, levasse seu cobertor. Sem entender ele desembrulhou o amontoado de tecido e um choro estridente de bebê fez até os cachorros se calarem.

Foto cedida do arquivo pessoal de Nuala Machado. Bairro Cidade Baixa em Porto Alegre-RS.

Tentei voltar para meu ninho entre os lençóis, mas aquele amontoado de tecido sujo já não me oferecia conforto. Rolei para o chão. Senti Sua umidade e frieza em minhas costas. Lá fora, aos poucos meu bairro se dissolvia. A ideia de ficar e viver na minha pequena ilha de concreto não me parecia tão absurda. Meu apartamento minúsculo imundo e entulhado de coisas inúteis poderia ser aconchegante. Iria ficar e tê-La como minha única companhia.

À noite, a sombra de um homem de capacete entrou no meu quarto acompanhado daquela palavra que para mim ainda soava absurda. Finquei os dentes e me arrastei para baixo da cama junto com o pó, meias e calcinhas sujas e embalagens abandonadas. Com os dedos busquei em cima do colchão meu maço de cigarro e um isqueiro rosa choque. O acendi ali mesmo, ignorando os perigos de fumar debaixo da cama. Exalei tentando acompanhar Seu ritmo lá fora. Foi quando escutei um impacto e gritos em vozes masculinas. O cara bonito que mora logo acima de mim pulou Nela. Queria sair logo da sua ilha e preferiu Sua sujeira densa e líquida. Certamente pensou que a profundeza o abraçaria, mas já teria essa capacidade? Um dos homens de capacete, um alto de meia-idade e braços bem esculpidos, agarrou o bonito com as duas mãos e o jogou como um peixe para dentro do barco. Ele abriu a boca e com sua primeira puxada de ar engoliu o que pareceu litros da água marrom. Mas não parecia ferido. Ela já conseguia abraçar.

Dormi debaixo da cama com os dedos agarrados no maço de cigarro. De manhã, os barcos já eram menos. Ela estava tranquila, como um comandante que venceu sua guerra e segue avançando pelo simples prazer da conquista. Aos poucos, senti Seu corpo debaixo do meu. Era gelado e fedia mais do que a minha inércia e autocomiseração. Quando me dei conta, Ela já acariciava meus cabelos e se encaixava nas curvas entre meu corpo e o chão. Não demorou muito para que começasse a sussurrar no meu ouvido. Com os dedos trêmulos e molhados, tentei acender meu último cigarro, mas Ela não deixou. Sua umidade tomou meu esconderijo. Ela queria se fundir a mim.

Me rastejei para fora e sem querer meu queixo encostou Nela. Pisquei várias vezes. O sol fez doer meus olhos, mas não mais do que a imagem que tive quando olhei pela janela. Minha rua era agora apenas um tapete marrom líquido denso que já chegava à janela do meu quarto. Senti meus pulmões se encherem e se esvaziarem rápido. Minhas mãos estavam molhadas, agora de suor. Rasguei a tela com as mãos, prendi o ar e atirei meu corpo pra fora. Suas facadas de frio feriram minha pele. Seu fedor invadiu meu nariz. Sai nadando cachorrinho pela rua em que um dia caminhei. O vira-lata do filho da Dona Marta passou do meu lado. Trocamos um olhar de cúmplices.

Foto cedida do arquivo pessoal de Nuala Machado. Praça da Alfândega em Porto Alegre-RS.

A cada respirada eu lutava para não encostar a boca Nela, aquele tapete marrom líquido. Cheguei no telhado de uma casa justo a tempo de desviar de um tronco estranho que passou rápido ao meu lado e mergulhou na água. Esperei, tremendo e tentando entender meu novo bairro. O letreiro da Churrascaria do Garcia mal se via. Padaria Sonho Bom nem se achava. A casa da Dona Cláudia, antiga no bairro, já não existia. Ela clamou mesmo tudo para si.

Minutos ou horas depois, ouvi ao longe a voz de uma menina faceira. Parecia que brincava na escola. “Abaixa a cabeça”. Pausa. Uma risada. “Abaixa a cabeça!”. Pensei que os dias de isolamento haviam levado o melhor de mim até que vi, em cima de um jetski, um homem de meia-idade acompanhado de uma mulher e duas crianças. Eles navegavam por Ela e desviavam as cabeças dos cabos de energia quando a menina gritava, alertando de mais um obstáculo no meio de sua grande aventura. Sorri pela primeira vez em três ou mais dias. Foi ela que me viu e, como já havia aprendido no início do jogo, gritou “Resgate?!”. Puxei o ar, me equilibrei no telhado e respondi “Sim, aqui!”. Poucas horas depois, a Água também me levou embora.

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Gaúcha de Porto Alegre, Débora Backes é jornalista, escritora e roteirista baseada em Berlim. Receba e leia mais contos e crônicas da autora em sua newsletter “Escrevi Sóbria”. Para assinar, é só clicar aqui.

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