Maria Kallás é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e mestre em Ciência Política pela Université Paris 8. Diplomata desde 2013, está atualmente à frente dos setores cultural e educacional da Embaixada do Brasil em Buenos Aires.
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Cena Berlim (CB) – Quais foram os maiores desafios que você enfrentou ao liderar o setor cultural da Embaixada do Brasil em Berlim?
Maria Kallás (MK) – Liderar o setor cultural da Embaixada do Brasil em Berlim foi um privilégio e uma tarefa que me deu muitas alegrias nestes três anos. Berlim é uma cidade com uma vida cultural fervilhante, a comunidade brasileira residente é cheia de artistas maravilhosos/as e de agitadores culturais, e o Brasil é uma potência cultural. Dito isso, o trabalho no setor cultural da Embaixada envolve muitos desafios. Eu diria que o maior desafio que enfrentei neste período foi a falta de pessoal para atender à enorme demanda reprimida após a pandemia e a mudança política no Brasil. Como vocês sabem, assumi o setor em março de 2022, quando a pandemia ainda impunha limitações às atividades culturais. A partir de 2023, essas limitações se encerraram e a mudança política no Brasil levou a uma reaproximação intensa entre Brasil e Alemanha. Essa nova conjuntura trouxe para nós uma avalanche de projetos e pedidos de cooperação. Resultado: faltaram pernas para dar conta de tudo — foi um período feliz, mas de trabalho muito intenso.
CB – Como você vê a importância da diplomacia cultural na relação entre o Brasil e a Alemanha?
MK – A Alemanha, terceira maior economia do mundo e principal país da União Europeia, ocupa naturalmente uma posição prioritária na diplomacia brasileira. Isso aumenta a responsabilidade da Embaixada em Berlim em todas as frentes de cooperação e diálogo, inclusive na diplomacia cultural.
CB – Como você avalia a recepção da cultura brasileira pelo público alemão e internacional em Berlim?
MK – Entre os países europeus, a Alemanha não está entre os mais receptivos à cultura brasileira. França, Reino Unido, Portugal e Espanha demonstram maior interesse e identificação. A sociedade francesa, por exemplo, tem uma conexão cultural mais forte com o Brasil do que a alemã, enquanto Portugal compartilha um verdadeiro senso de comunidade. Ainda assim, Berlim se destaca como um polo global de arte e cultura, atraindo muitos artistas brasileiros. A diáspora artística brasileira na Alemanha cresce continuamente, ampliando também nossa presença cultural no país.
Apesar disso, conquistar o público alemão ainda é um desafio. Áreas como literatura e ensino da língua portuguesa exigem grande esforço, já que as literaturas em português são pouco divulgadas na Alemanha e o interesse pela língua ainda é muito restrito.
CB – Houve mudanças significativas nas estratégias culturais da Embaixada ao longo do seu tempo no cargo?
MK – Entrei no setor cultural em março de 2022, ainda durante o governo Bolsonaro. Em janeiro de 2023, houve uma mudança significativa na política brasileira e, com ela, na política externa. Em tese, não se fazem mudanças bruscas na diplomacia, mas o governo anterior foi uma exceção. A transição para o novo governo, por um lado, significou um retorno às diretrizes que tradicionalmente guiaram a política externa brasileira e, por outro, trouxe diretrizes novas para a diplomacia cultural, priorizando diversidade de gênero, igualdade racial, valorização regional e expressões culturais afro-brasileiras e indígenas — uma diferença marcante em relação ao foco anterior nos 200 anos da independência nacional, tema legítimo e natural, mas muito distinto dessas novas prioridades.
Outra mudança relevante foi a oscilação na disponibilidade de recursos. Em 2022 e 2023, houve maior investimento e conseguimos realizar muitas atividades. Já a partir de abril de 2024, com a aplicação de fortes restrições fiscais pelo governo federal, os recursos diminuíram drasticamente — uma realidade que atinge em cheio as atividades do Ministério das Relações Exteriores e que persiste até o momento atual, lamentavelmente.
CB – Há alguma iniciativa ou projeto específico do qual você se orgulha particularmente durante sua gestão?
MK – Sem dúvida, considero o Kunstmosaik – Sarau das Artes na Embaixada, feito em parceria com o Cena Berlim, um dos projetos mais interessantes que realizamos. O sarau transformou a Embaixada em vitrine para artistas brasileiros/as residentes em Berlim, com diversidade de segmentos artísticos e apresentações múltiplas por noite, sempre pautadas por critérios de diversidade de gênero e étnico-racial. Foi uma iniciativa ousada, difícil imaginar outra embaixada no mundo com algo semelhante. Trabalhar em parceria com a diáspora artística brasileira auto-organizada — este último aspecto sendo de extrema importância — foi especialmente valioso. Quando a comunidade já está articulada, o trabalho da Embaixada se potencializa em todos os sentidos.
Destaco também nossa atuação na Berlinale. Apoiamos praticamente todos os projetos que solicitaram ajuda, oferecendo auxílio financeiro a, pelo menos, um representante por filme. Também garantimos apoio aos/às participantes do Berlinale Talents. Além disso, há o suporte contínuo ao CineBrasil, que este ano completa 20 anos e é a única mostra dedicada exclusivamente ao cinema brasileiro realizada de forma regular na Alemanha.
Houve uma grande variedade de iniciativas: da publicação da antologia de textos de Nelson Rodrigues traduzida ao alemão à edição especial de uma revista de música clássica dedicada ao Brasil; apoio à tradução de monografias acadêmicas sobre os 200 anos da imigração alemã no Brasil e uma exposição sobre o mesmo tema no ano do bicentenário. Tivemos ainda leituras dramáticas, recitais de poesia, sessões de cinema, inúmeros concertos (inclusive de orquestras, como a Orquestra Sinfônica Jovem de Goiás e a Orquestra Maré do Amanhã), exposições históricas, de arte contemporânea, de arte digital... Especial menção vai para a Degenerado Tibira, que reuniu trabalhos de 19 artistas LGBTQIA+ do Norte e Nordeste do Brasil, com um recorte totalmente decolonial.